Flávio Augusto Mezadri Pizzol’s review published on Letterboxd:
El Camino pode não ser um produção necessária, mas cumpre sua missão de concluir a jornada de Jesse com intensidade e coerência dignas de Breaking Bad.
Breaking Bad é, sem nenhuma dúvida, uma das melhores séries de todos os tempos. Um produto de puro brilhantismo narrativo que, durante cinco temporadas, operou o milagre de prender o espectador nesse estudo de personagem cru e avassalador que explorava as nuances de um químico frustado durante sua transformação em chefe do tráfico. Porém, além disso, a série conseguiu a proeza de evitar as clássicas renovações desnecessárias, terminando na hora exata. Agora, alguns anos depois de Walter White encerrar sua jornada e Better Call Saul comprovar o valor da marca em forma de prequel, El Camino chega com a missão de valorizar seu personagem mais subestimado: o incrível Jesse Pinkman.
A história do longa - que obviamente começa logo após o final da série original - nos leva de volta para Albuquerque com o objetivo de acompanhar o antigo braço direito de Walter White nessa jornada dividida entre vingança, coleta de dinheiro e redenção que acaba explorando tanto seu tempo no cativeiro, quanto sua fuga propriamente dita. Tudo regrado com flashbacks desconhecidos (olá J.K Rowling), personagens clássicos e outras referências diretas a momentos icônicos de Breaking Bad.
Uma solução narrativa orquestrada pela mente talentosa de Vince Gilligan (Hancock) com a intenção bastante clara de encurtar metaforicamente os seis longos anos que separam El Camino do seu material de origem. Atuando da maneira mais completa possível como roteirista, diretor e produtor do longa, Gilligan usa (sem nenhum disfarce) essa mistura entre coisas inéditas e menções honrosas como uma chave que acessa a nostalgia do espectador desde o primeiro instante. Soa um tanto quanto apelativo nos primeiros momentos, mas acaba sendo honesto com a fato de que uma história realmente da outra pra existir.
E, diante dessa situação, sou obrigado a admitir que não existe ninguém melhor do que o criador da porra toda quando se trata de escolher e organizar o que merece ser mostrado em uma continuação. Gilligan conhece aqueles personagens e suas respectivas histórias como a palma da mão, logo sabe exatamente o que fazer com a história durante esse passeio estendido que percorre desde acontecimentos específicos (como no caso do ataque com os imãs) até detalhes mais contidos que ajudam na amarração de todas as peças principais. É, sem nenhuma dúvida, um retorno que respeita e se apropria com precisão da essência de Breaking Bad em todos os aspectos da narrativa.
Consequentemente, El Camino também acaba dando muita atenção para os inúmeros elementos visuais e sonoros que ajudaram Walter White e sua turma a alcançarem o sucesso. Em outras palavras, o longa acerta em cheio na escolha de ângulos incomuns; na fotografia árida que, graças ao trabalho de Marshall Adams (Better Call Saul), continua sendo o charme das cenas no deserto; na seleção de canções - originais ou não - feita por Dave Porter (Preacher); na edição certeira de Skip Macdonald (Desventuras em Série); e na construção da tensão nos momentos decisivos que separam os atos. São escolhas típicas de Breaking Bad que mexem com os fãs, dão corpo ao longa e ainda crescem quando são reunidas a outras boas sacadas que surgem nas transições entre cenários e linhas temporais.
É a comprovação de que a proposta de Vince Gilligan é reverenciar sua própria obra, mas também adicionar um tempero que, assim como em Better Call Saul, funcione como um diferencial indiscutível. Aquele toque a mais que, nesse caso, é justamente fazer o que a série nunca havia feito antes: colocar Jesse Pinkman como protagonista. Então, se o ritmo do filme soa um pouco estranho para os fãs, é porque El Camino realmente possui um foco diferente. É um estudo de personagem com cara de road movie que, mesmo apoiado em estrutura linear demais, usa os "paradas obrigatórias" como pontos onde mergulhamos em sofrimentos, angustias e dúvidas praticamente inéditas para o universo em questão.
O resultado é uma reflexão profunda sobre esse homem machucado por suas escolhas que, obviamente, depende do trabalho de Aaron Paul (Decisão de Risco) para funcionar. E eu digo obviamente porque, ao contrário do que muitos dizem, ele não precisa usar essa produção como palco para comprovar seu talento. Tanto que o texto segue as regras dos estudos de personagem e coloca tudo nas costas dele, exigindo altas doses de carisma, presença de cena e domínio dos dilemas que movem o protagonista. Com muita dedicação e intensidade, Paul entrega tudo isso e muito mais em um pacote que obriga o público a torcer por ele até mesmo nas situações menos favoráveis.
Esse trabalho eficiente do ator não só reflete nas boas participações que dividem cena com Pinkman, como também influencia bastante no balanço de uma produção sem grandes surpresas que conquista o espectador pela nostalgia, pela consistência narrativa e pela força de seu condutor principal. Dito isso, vou me manter isento em relação a quem está tratando o filme como uma tentativa atrasada de trazer novos fãs ou como um apêndice desnecessário diante do desfecho impecável de Breaking Bad, mas vou dizer que a forma como El Camino explora as camadas de Jesse fez valer as duas horas sentado na frente da televisão. Pode ser dispensável ou insignificante, porém também é uma conclusão emocionante para um personagem que merecia um lugar ao sol depois de tanto tempo escondido atrás de Walter White.
OBS 1: O filme é feito quase que exclusivamente para fãs. Quem não viu a série vai ficar perdido, sem nenhuma dúvida.