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O Amigo do Rei 2019
Sob sonoridade sacra, cambaleia uma bandeira do Brasil. A música permanece, mas a imagem se dissolve. O movimento horizontal descobre um terno; atrás dele, fora de foco, a moldura dourada de uma pintura. Dourada como o anel na mão que ajeita o paletó. Dourada como a abotoadura cuidadosamente posicionada na gravata. Dourada como os dentes amarelos, que sorriem. Ou como as hastes dos óculos cujo dono fita o espectador. O homem desaparece, a música continua. Uma tomada aérea revela um…
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Yao 2018
Em um luxuoso apartamento parisiense, o pequeno Nathan comemora seu aniversário. Enquanto se distrai com a atração da festa - um palhaço -, o menino se deixa capturar pelas lentes do pai. Corte. Mais de cinco mil quilômetros distante, no nordeste do Senegal, o ligeiramente mais velho Yao conta uma história aos amigos. A narração interrompe-se pelo acaso, algo inimaginável aos olhos do espectador metropolitano: um bode devora uma página inteira do livro - a qual, por sua vez, o…
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Tolkien 2019
Eu não consigo pensar em nada mais necessário. Especialmente em tempos como esses. Especialmente agora.
Nascido em Bloemfontein, hoje território sul-africano, John Ronald Reuel Tolkien – ou J. R. R. Tolkien – construiu, por meio das palavras, um riquíssimo universo imagético. Antes restrito à imaginação, a migração para o cinema conferiu forma àquele mundo. Esse processo, contudo, aconteceu à revelia do escritor. A primeira versão cinematográfica de O Senhor dos Anéis (The Lord of The Rings, 1954) estreou em 1978,…
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Red Joan 2018
Você virou advogado porque acreditava no que estava fazendo. Eu também.
Arte e política lidam com os mesmos problemas. Disso parece consciente “A Espiã Vermelha” (Red Joan, 2018): seja ao identificar um espírito revolucionário na literatura de Charles Dickens, seja ao arriscar uma incipiente metalinguagem. Nessas notáveis tentativas, a grande tela espelha outra. Ação e recepção confundem-se, por exemplo, quando Eisenstein invade a reunião do Comintern – não a pessoa física, é claro, mas a força de suas imagens.
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Mademoiselle Paradis 2017
Ela não é bonita, mas toca bem.
Ainda antes dos créditos, a turbidez acompanha o som de piano. Em seguida, uma cartela anuncia a origem literária do argumento. Am Anfang war die Nacht Musik: no princípio, a noite era música. Segundo o poético título de Alissa Walser, o som precede a imagem – ou seja, já se ouvia mesmo antes de se ver. Essa perspectiva parece inverter-se na versão cinematográfica de Barbara Albert (“Os Mortos e os Vivos”). Licht, ou luz, nomeia seu mais novo filme – ideia ignorada pela tradução com a qual “Mademoiselle Paradis” chega ao Brasil.
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On the Basis of Sex 2018
Não estamos pedindo que mudem o país. Isso já aconteceu sem a autorização de nenhum tribunal.
Rufam os tambores. “Inspirado em uma história real”, anuncia a cartela, enquanto se ouve uma marcha de inspirações militares. “Ten Thousand Men of Harvard”, composta em 1918, até hoje antecede grandes eventos universitários. “Os dez mil homens de Harvard / Desejam a vitória hoje”, diz a letra. E quanto às mulheres?
Em meio a sucessivos planos fechados de ternos, em marcha sincrônica com a…