(com a colaboração do Lucas Baptista e do Sérgio Alpendre)
Estes filmes que, numa língua desconhecida, contam histórias totalmente estranhas a nossos costumes ou hábitos – estes filmes, na verdade, falam uma língua familiar. Qual? A única que almeja qualquer cineasta: a da mise en scène. Os artistas modernos não descobriram os fetiches africanos convertendo-se à religião dos ídolos, mas deixando-se comover por estes objetos insólitos enquanto escultura. Se a música é um idioma universal, a encenação também o é: esta língua, e não o japonês, é que devemos aprender para compreender “o Mizoguchi”. Língua comum, mas levada aqui a um grau de pureza que nosso cinema ocidental só excepcionalmente conheceu. - Jacques Rivette, Mizoguchi Visto Daqui
Selecionando os filmes com a ajuda do Sérgio e do Lucas, percebi que o que faz um filme falar "o Mizoguchi" não é a articulação, nem a combinação, nem a simples adição de certos elementos de composição (plano-sequência móvel coreografado + síntese elegante dos elementos plásticos + apuro nas elipses dos grandes blocos cênicos, cujo encadeamento passa a impressão de um filme composto por um longo plano + condensação dramática imprimida na continuidade espaço-temporal + o jogo entre hieratismo e dinamismo tanto nos elementos cênicos quanto nos corpos dos atores, e principalmente no contraste entre as movimentações desses corpos e a espessura do décor + percepção triangular de espaços quadrangulares + distribuição parcimoniosa dos tamanhos dos enquadramentos no decorrer do filme). O "Mizoguchi" é frequentemente questão de um detalhe que muda tudo, que leva à soma inesperada de uma série de elementos distintos e heterogêneos, e geralmente é esse detalhe que dá a esse conjunto uma liga, de modo que vários dos filmes aqui presentes prescindem de um ou até de mais de um desses elementos (o "plano-sequência móvel coreografado", ausente no caso do Lester James Peries, ou o "apuro nas elipses" no caso do Ritwik Ghatak; o peso que a continuidade espaço-temporal confere à composição do drama no interior da construção narrativa não é tão importante para Stavros Tornes ou para o casal Reis/Cordeiro, e o "jogo entre hieratismo e dinamismo" é mais bem-sucedido nos filmes do Cimino em que a fascinação depende menos da aceleração etc.).
Se o "Mizoguchi" é uma língua, ele depende, em alguma medida, de alguns signos, mas a cada nova inflexão, a cada nova articulação ele transcende as convenções de base sobre as quais se compôs. Em outras palavras: uma língua, mas dificilmente uma linguagem. E é por isso que, por exemplo, acentuando aspectos distintos, Ford e Cottafavi são os cineastas mais aparentados ao Mizoguchi: Cottafavi por apostar tudo no plano-sequência móvel coreografado, transcendendo a superfície da geometria espacial e a literalidade das falas para nos fazer sentir o alcance de um olhar que manifesta tanto uma escolha como uma intenção na proposição de uma certa visão de mundo, e Ford por alinhar a distribuição do drama nos blocos cênicos à escala de planos, e mais precisamente à distribuição dos tamanhos dos enquadramentos no decorrer dos filmes.
Há também uma outra questão: a do acento dado a tal elemento em função dos conjuntos de elementos, e é por isso que dois cineastas próximos como Ford e Hawks acabam parecendo tão distintos quando vinculados ao cinema de Mizoguchi. A ênfase no humor sardônico alinhado à retidão das trajetórias das personagens faz com que Hawks trabalhe menos no ritmo que na cadência, menos na dinâmica que na mecânica, e é por isso que o autor de Rio Bravo de repente parece tão distante tanto do de Sanshō Dayū quanto do de The Last Hurrah - ainda que Rio Lobo, por uma leve coloração trágica que acaba atenuando a parte de humor e retardando um pouco o efeito cumulativo da construção em cadência (ecos de Red River, filme potencialmente mizoguchiano), e principalmente Land of the Pharaohs falem o "Mizoguchi".
Se o estilo é uma forma sem destinatário, uma língua sem linguagem, é natural que baste um detalhe para que o autor de The Searchers se distinga no tom, na fluência, no objetivo e na moral do de El Dorado. Eis o que salva os cineastas com filmes nesta lista de sucumbirem às facilidades, como a Valeska colocou tão bem aqui: é questão de um detalhe mais do que de um acento, de um acento mais do que de uma soma, de uma soma mais do que de uma construção. A arte de Mizoguchi, que Rivette definiu tão bem como "uma arte da modulação", é o resultado de um equilíbrio provisório (permanente para um filme, mas permutável de filme a filme), e isso me faz pensar em algo que o Mizoguchi dizia ao Yoshikata Yoda antes de começarem cada filme, uma indicação do que o filme deveria ser, que era mais ou menos assim: "nem muito sujo, nem muito limpo, nem muito alto, nem muito baixo, nem muito agitado, nem muito monótono". É por isso que qualquer acento mais grave, mais agudo - seja no realismo, no irrealismo, no surrealismo, na comédia, no patológico, no lascivo, no pitoresco -, qualquer elocução mais prolongada de um elemento que incentive a fragmentação, a rarefação ou a intensidade em demasia arrisca dissipar a unidade de composição, i.e. a "liga", que dá ao filme a sua atmosfera e o seu tom ("uma nota tão pura e constante que a menor variação se torna expressiva"). É por isso que há apenas um filme do Franju, um da Akerman, dois do Buñuel, dois do Kazan e dois do Sternberg nesta lista.
Quanto aos cineastas e a quantidade de filmes deles na lista, ficou assim:
15 filmes: John Ford, Vittorio Cottafavi
9 filmes: Frank Borzage, Max Ophüls
8 filmes: Otto Preminger
7 filmes: Raoul Walsh, Joseph Losey, Douglas Sirk
6 filmes: Jacques Tourneur, Vincente Minnelli, Richard Fleischer, Roberto Rossellini, Alexandre Astruc
5 filmes: Georg Wilhelm Pabst, Edgar G. Ulmer, Jean Grémillon, Leo McCarey, Fritz Lang, Shin Sang-ok, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, Claude Chabrol, Manoel de Oliveira
4 filmes: Allan Dwan, Jean Renoir, Robert Bresson, Henry King, Raffaello Matarazzo, Ida Lupino, Valerio Zurlini, King Hu, Marguerite Duras
3 filmes: John M. Stahl, King Vidor, Abel Gance, Boris Barnet, Carl Theodor Dreyer, Joseph L. Mankiewicz, Nicholas Ray, Luchino Visconti, Samuel Fuller, Anthony Mann, Satyajit Ray, Ritwik Ghatak, Mikio Naruse, Kinuyo Tanaka, Luigi Comencini, Jacques Rivette, Víctor Erice, Paul Newman, Jean-Claude Brisseau
2 filmes: F. W. Murnau, Pál Fejös, Cecil B. DeMille, Tay Garnett, Ernst Lubitsch, Josef von Sternberg, Sacha Guitry, Mitchell Leisen, William Wyler, Alfred Hitchcock, Henry Hathaway, Orson Welles, Michael Curtiz, Joseph H. Lewis, Mark Donskoy, Riccardo Freda, Luis Buñuel, Ingmar Bergman, Robert Aldrich, George Cukor, Stuart Heisler, Howard Hawks, Delmer Daves, Michelangelo Antonioni, Salah Abouseif, Budd Boetticher, Elia Kazan, Alexander Mackendrick, Lester James Peries, Sergio Sollima, Philippe Garrel, Sergei Parajanov, Robert Mulligan, Miklós Jancsó, Éric Rohmer, Dino Risi, Michael Cimino, John Carpenter, Jean-Claude Guiguet, António Reis & Margarida Cordeiro, Paulo Rocha, Rob Tregenza, Darezhan Omirbayev, Pedro Costa
1 filme: Fyodor Otsep, Yonggang Wu, Clarence Brown, Sun Yu, Marcel L'Herbier, Anatole Litvak, Gregory La Cava, Shen Xiling, Michal Waszynski, Hiroshi Shimizu, Gustav Ucicky, Mervyn LeRoy, Irving Rapper, Fei Mu, Edward Ludwig, Jules Dassin, Hugo Fregonese, Manuel Mur Oti, John Berry, William A. Wellman, Gerd Oswald, Frank Tashlin, Jack Arnold, John Cromwell, André De Toth, Don Weis, Michael Powell, Ermanno Olmi, Georges Franju, Roberto Gavaldón, Blake Edwards, Jean-Luc Godard, Yuliya Solntseva, Andrei Tarkovsky, Tang Shu Shuen, Kaneto Shindô, David Lean, Rogério Sganzerla, João César Monteiro, Claude Santelli, James B. Harris, Rainer Werner Fassbinder, Theo Angelopoulos, Monte Hellman, Oumarou Ganda, Pierre Rissient, Mani Kaul, Stavros Tornes, Fredi M. Murer, Manuela Serra, Hou Hsiao-hsien, Paul Vecchiali, Alain Tanner, Gérard Blain, Joris Ivens, Park Kwang-su, Jean-Claude Biette, Arturo Ripstein, Paul Verhoeven, Jean-Claude Rousseau, Luc Moullet, Abbas Kiarostami, Chantal Akerman, Raoul Ruiz, Edward Yang, James Gray
Sobre o interesse e a necessidade de fazer esta lista, este trecho aqui:
Muito naturalmente essa proposta, essencialmente clássica, criou para si um estilo, uma tradição de narrativa da qual quase ninguém se desviou, sendo inclusive conduzida pelos imigrantes (Lang, Preminger), na América precisamente, a um ponto até então inaudito. Esta tradição possui tanta unidade e se exerce em tantos níveis que podemos apreendê-la por onde quisermos. No nível dramático, por exemplo: é necessário que o desenrolar da ação dê a conhecer sucessivamente todos os aspectos sem privilegiar qualquer deles e que ao término de uma narrativa casada fielmente com a cronologia dos fatos, não reste nenhuma zona de sombra; que, se enigma houver, faça-se finalmente luz e verdade sobre ela. Estas coisas são bem conhecidas, inútil insistir. Têm-se uma preferência pelo nível moral: a intuição que sustenta todo classicismo é que o mundo pode ser descrito através de uma sucessão de fatos claramente articulados, e ser igualmente compreendido (ordenado) através deles. Compreender, construir (uma cidade ali onde nada existia, depois uma escola nesta cidade etc.), é tudo uma só ação: ordenar. O cinema se propagava repentinamente, na América, e seu objeto e sua forma; a inteligência, a perspicácia encontravam-se ali encavilhadas a um propósito moral. Um milagre. Ainda hoje se fala disto.
Para nos atermos a outro nível de técnica, talvez o mais evidente, voltemos nossa atenção ao fato de que, nesta tradição, a câmera tendia à invisibilidade, ao esquecimento completo de si mesma; e, com ela, desaparecem (queriam desaparecer) autor, testemunha, narrador, ou ao menos suas pessoas. Não ser mais que um olho, de forma que, tanto nos deslocamentos como na imobilidade, esqueçamos até o fato que este olho olha: este era o único mandamento e ideal que ela desejava se impor. Olho fechado, filme terminado, tudo está dito e a narrativa concluída. Sobre este ponto, além das obras, todos os testemunhos (Walsh, Lang, Preminger) estão de acordo. E o fazem de tal maneira que esta tradição, verificada extra-muros na obra de um Mizoguchi, confundiu-se totalmente com a própria noção de mise en scène. Há, sem dúvida, um tipo de fatalidade a que se reportar, uma harmonia secreta pré-estabelecida entre uma disciplina visual de narrativa impessoal e o ato de encenar, visto que Maupassant já escrevia num memorável estudo sobre Flaubert: “Ele nunca anuncia os acontecimentos; pode-se dizer ao lê-lo que os fatos vêm falar por si só, tanto que ele associa de importância à aparição visível dos homens e das coisas. É esta rara qualidade de metteur en scène...” Não sou eu quem sublinha, é Maupassant, em 1884. O cinema deveria exaltar tal harmonia, e vivê-la.
E sobre a conclusão geral que tirei montando a lista, este trecho aqui:
Pronto, isso é tudo. O resto me é bastante indiferente. A vanguarda e os grandes clássicos. Entre os dois, muito poucas coisas me interessam.